“Procuram-se Bonecas Pretas!”: a importância das personagens femininas negras nas produções culturais infantis

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Por Mariana dos Reis

Atriz Silvia Regina – Foto: Arquivo Pessoal

“Procuram se bonecas pretas!”. Entoa a  canção da cantora e atriz Larissa Luiz, ilustrada por um clipe musical, inserindo uma crítica à indústria de brinquedos que invisibiliza a existência da representação da menina negra nas bonecas.

Deste modo, o mercado editorial de livros e peças de segmento infantil também acompanharam, durante anos, esta escassez de publicações ou produções artísticas que retratassem a representatividade da criança negra nas suas narrativas. Quando presentes em tais histórias, apareciam na condição de papéis coadjuvantes de subalternização, seja nas cenas domésticas ou expressando características jocosas, ilustradas em situações de humor ou ridicularização de suas personalidades. Isso, quando estes personagens não aparecem nas narrativas mudos ou vinculados a representação do período colonial da escravidão.

No universo infantil, este apagamento da existência da personagem negra feminina é ainda mais acentuado perante os códigos de branquitude reforçados pela indústria cultural midiática desde a década de 80, seja em programas infantis, comerciais televisivos ou representações de desenhos animados. Quem não se lembra do desejo de toda menina brasileira em ser paquita no programa da Xuxa? A efetivação deste sonho infanto juvenil no Brasil só se concretizaria a partir do atendimento de pré requisitos estéticos demarcados hegemonicamente: ser loira, de olhos claros, pele clara e de preferência, possuir cabelos lisos.

Esta hierarquia da construção da noção de “belo” e da cultura eurocêntrica como universal pode ser notada através da exposição destes personagens infantis em histórias que fixam a idéia de desprestígio do lugar da menina negra do ponto de vista racial, social e estético. A cultura negra brasileira parece não existir nos livros  infantis e quando estas histórias priorizam uma personagem feminina com traços de brasilidade, elegem a mestiça como protagonista. Essa escala de hierarquia estética se atribui diante dos processos de branquitude na nossa sociedade.

A pesquisadora Lia Schucman ressalta que a categoria branquitude é entendida como uma posição em que os sujeitos foram sistematicamente privilegiados, no que diz respeito a acessos materiais, econômicos e sociais, gerados pelos efeitos da escravidão. Por isso, entender a branquitude é compreender a desigualdade racial pela ótica de inúmeras prerrogativas brancas, individuais ou estruturais. Neste sentido, a estética e a cultura também é uma forma de representar o racismo diante de formas de estruturas de poder. Assim, ser lida como “branca” na sociedade brasileira é receber atributos positivos, seja por concepções de estética ou simbólica, esta última reverberando a idéia de sucesso, progresso e formação.

Por sua vez, a “leveza” de ser uma menina ou mulher branca na lógica do capital, favorece  suas condições substanciais de existência e essa escolha é assumida através da representação da maioria dos personagens infantis da ficção. Contudo, devido aos intensos debates promovidos por grupos de representatividade negra nos movimentos sociais e ebulição das produções de pesquisas acadêmicas acerca do feminismo negro e relações étnico raciais, esta perspectiva nas produções artísticas e literárias tem se modificado. 

Desta forma, o debate étnico racial foi sendo também incorporado pelas gerações mais novas  diante do contato com a rede social e surgimento de referências de encorajamento no seu convívio, seja no seu universo familiar, de amigos ou figuras públicas de referência. Uma das referências de figuras públicas geracionais é a cantora de hip hop, Mc Soffia (15 anos). Ela aborda temas em suas letras como o feminismo, empoderamento e negritude. Com versos como: “Menina pretinha, exótica não é linda/ Você não é bonitinha /Você é rainha” do single  “Menina pretinha”, Mc Soffia questiona os padrões de beleza impostos pela sociedade. 

É importante frisar que uma das discussões mais enfatizadas no universo das meninas negras, em fase de escolarização atualmente, é aceitação do seu cabelo crespo, ao qual elas atribuem de “coroa”, denominando as amigas negras com madeixas semelhantes de “rainhas”. Este marcador estético, durante décadas, foi potencializador de muitos casos de baixa auto estima ou depressão de meninas negras que se sentiam rejeitadas pelos coletivos sociais. No entanto, agora este público infantil e infanto juvenil não só vem incorporando sua auto aceitação, como vem exigindo dos espaços de produção de cultura, maior representatividade como a desconstrução das estereotipias  na caracterização de personagens negros.

Uma das grandes discussões, tanto no campo acadêmico de estudos sobre “Feminismo Negro”, como nos espaços de militância é a superação da perspectiva colonial da existência da “princesa” e dos “contos de fadas”, elementos de bases eurocêntricas, em que a personagem feminina está sempre à espera de um príncipe encantado ou um desfecho perfeito. Embora esta condição de quebra de paradigma se apresente como ideal para a emancipação das meninas negras, a maioria das referências de histórias que lhes foram contadas durante toda infância acompanharam esta vertente. É importante também frisar que as crianças brasileiras possuem uma multiplicidade de vivências e pertencimentos sociais, territoriais, religiosos, familiares e étnicos que registram diferentes visões acerca destes contos de fada. As singularidades das vivências infantis permitem com que estas histórias sejam contadas de inúmeras formas.

Estas releituras de “clássicos” com a inserção de personagens femininas negras têm tido recorrência nos espaços de produção cultural do segmento infantil da atualidade. Um dos exemplos é a estréia da peça “A Bela Adormecida” no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, sob a direção de Alexandre Lino. A trama conta como protagonista da história, uma atriz negra, de pele retinta e cabelo crespo Black. Formada em Dança pela UFRJ, a atriz Silvia Patrícia que ressalta a importância dos personagens negros no teatro infantil: “Contempla a diversidade pois traz um novo olhar para aquilo que foi considerado normal, o branco, o europeu. Uma nova Bela traz nova possibilidade de Bela mostrar que há outros tipos de beleza, de representatividade (…) São releituras que mostram a vivência do autor e tocam o coração das pessoas independente da faixa etária e etnia”. Ao se remeter as suas experiências enquanto menina negra na infância, a atriz se recorda “Sempre fui apoiada pela minha família sobre ser negra, ter orgulho das minhas origens e raízes. Tanto é que eu era a única negra de black, de tranças e fui estimulada. Quando fui fazer a prova da escola do teatro Municipal, eu achei que era a única bailarina negra e vi a foto de Mercedez Batista, que foi a primeira bailarina negra do Municipal. Descobri que havia bailarinas negras mas que não eram tão aclamadas. A partir dali, Mercedez Batista passou a ser uma referência para mim!

A pesquisadora Sylvia Soares recentemente defendeu sua dissertação de mestrado em Educação abordando, em seu estudo, a temática da importância de personagens femininas negras na literatura infantil. O trabalho contou com a orientação da professora Giovana Xavier, professora da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenadora do grupo de estudos “Intelectuais negras”, que apoia-se em referências de teóricos interseccionalidade, feminismos negros e decolonialidades.  Ao falar sobre a importância de sua pesquisa no universo atual, Sylvia enfatiza “que tenhamos um número elevado de personagens femininas negras em todos papéis (princesa, heroínas) e, de preferência, referências positivas e protagonistas. Porque o que a gente teve na maior parte da histórias infantis foi a presença de personagens negras femininas objetificadas ou subalternizadas. E relembra também a questão do apagamento da identidade individual das personagens femininas no livro “Menina Bonita do Laço de Fita” que foi um livro super famoso, você percebe que nem nome a personagem obtinha e a maioria dos personagens tem”. Assim, conclui sinalizando a relevância das referências positivas de personagens femininas para as novas gerações. “Referências positivas, inspirações e bons exemplos ampliam nossas perspectivas de vida. Se pensarmos nas personagens da novela, a caracterização de mulheres negras enquanto empregadas domésticas ou escravas fazem mal às referências das novas gerações. Então, é importante que tenhamos essa representatividade em todos os gêneros: livro, teatro, cinema”.


Pesquisadora Sylvia Soares  – Foto: Arquivo Pessoal

A mais recente novidade mundial com relação a este assunto é a escalação da atriz negra Halle Bailley, que viverá a personagem de Ariel numa versão  de “A Pequena Sereia”, com atores de animação pela Disney, empresa que raramente contrata atrizes negras para o papel de princesas. A maioria das sereias aqui no Brasil são retratadas como brancas, até mesmo Yemanjá, orixá de descendência africana. A positivação da referência da sereia mais popular  no mundo como negra impulsiona em muitas meninas negras que não se viam representadas, com o desejo de serem sereias agora.

Por fim, cabe a nós, pedagogas, produtores culturais, ativistas, professores de educação básica, intelectuais e pais o enfrentamento à supremacia branca que produz a invisibilidade das referências das nossas crianças negras e condiciona padrões eurocêntricos como universais. A escritora nigeriana Chimamanda Adiche propõe no livro “Para educar crianças feministas” uma formação para os pais que desejam criar seus filhos dentro de uma perspectiva feminista e étnico racial de um mundo mais justo, através do compartilhamento de experiências cotidianas com sua filha negra. Que possamos seguir estes passos também através da escolha de produções culturais infantis que contemplem a diversidade étnico racial.

Montagem feita com a atriz Halle Bailley e sua personagem, Ariel – Foto: redes sociais


Mariana dos Reis é Doutoranda em Educação, Professora do Instituto Benjamin Constant, Feminista negra e socialista

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