Princesas e plebeus

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A relação entre favela e asfalto é uma das nuances mais complexas dos conflitos entre os diversos brasis em que transitamos. A atração-repulsa, especialmente nos aspectos econômicos, sociais e culturais, dá o tom do quanto precisamos avançar para fomentarmos entendimentos.

Um detalhe que chama a atenção é, dentro dessa dualidade, a defesa do estilo de vida na comunidade como um traço de identidade, mas também a necessidade de validação de quem vem de fora para valorizar sua existência total. E, complexificando, este “senso comum” é traduzido em uma relação entre um homem preto e uma mulher branca.

“Eu moro no morro e ela na zona Sul, sou negão e a patricinha é loira de olho azul; quer sair do bairro nobre pra casar com um cara pobre – ela já tem eu de negro e quer fazer mais um” (“Patricinha do olho azul”, composição de Mag).

O fascínio pelo modelo “princesa e plebeu” é inegável. Muito comum no funk, ganha espaço no pagode. Contudo, ao aproximarmos o recorte, o encontro com percepções como autoestima, miscigenação, fetiche, masculinidade negra e solidão da mulher negra nos obrigam a ir além da batucada contando uma história de amor.

O desenho é apresentado: enquanto o valor do morro é ético-moral, o dinheiro vem de fora. O pobre não corrompido pela criminalidade conquistou ascensão pela arte; a rica vai, a partir de um desejo exótico, superar as dificuldades em nome do amor. E o local de concretização deste sentimento é o barraco, não a cobertura.

Há alguns níveis de machismo estrutural aí também: a mulher é quem tem que abrir mão de seu “passado” para viver o amor; como, nesta construção, o homem não é quem pode prover o sustento total da casa, não será ali que habitarão; e ela é o troféu que será exibido, cobiçado e invejado na vizinhaça. No registro do preconceito, ele não é um prêmio, ela precisa se esconder.

“Há dois dias e meio ela não da notícia, do seu mundo real ela quis esquecer. A favela já, já vai lotar de polícia. Mais uma vez na vida ela só quer viver. (…) Toca o que for, que ela detona: ‘pat’ virou faveladona” (“Faveladona”, composição de Diney e Cleitinho Persona).

Aparentemente, o prazer do homem está em provar que mesmo sendo preto – não é “bonito” no senso comum dos padrões de propaganda e tevê – e pobre, consegue conquistar as mulheres que possuem acesso àqueles dotados desta beleza e de riqueza. Seu poder de sedução é mais forte que as barreiras étnico-econômicas.

A mulher negra, e nesta simbologia ela aparece como sinônimo de moradora da favela, é alguém que não desperta esse interesse e, mais ainda, critica ou busca prejudicar aquela relação. Quando se fala que “somos todos seres humanos”, não se encontram os exemplos igualitários para consolidar a tese.

Este olhar desvalorizado para os que nos cercam e a procura por alguma salvação oriunda de fora é disseminada consciente e inconscientemente. Somos ensinados a nos cobrar e renegar, sendo incrivelmente pacientes e dóceis com o restante do mundo. Caso contrário, somos apenas raivosos(as). É apenas para pensar um pouquinho.

Aqui, a favela é entendida como um lugar de pobreza e riqueza cultural, o espaço inusitado de exploração da “estrangeira” que só apaixonada vai largar tudo para vivê-la. O status que o conquistador ganha é interno; fora, ele segue sendo mais um, assim como ela. Não há encontro.

Só lembrando: a arte não está apartada da realidade em que ela é produzida. Muito pelo contrário, ela não é neutra. A construção de nossa identidade e nossa relação com nossos irmãos é sabotada desde sempre. A luta depende mais de uma conversa entre nós do que uma conversa com quem não é da “família”.

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