Precisamos falar sobre a solidão da mulher negra

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Por *Iane Pessoa 

Desde criança sempre tive muitos sonhos, lembro que o primeiro deles era ser modelo. Mas o tempo e a televisão me mostravam que não havia mulheres semelhantes a mim nas passarelas. Então, eu desisti. No ensino médio percebi que precisava me dedicar três vezes mais para obter os mesmos resultados que os alunos brancos da escola mais cara da minha cidade. As pessoas me diziam que sem esforço eu não iria a lugar nenhum, mas eu sentia que não importava o quanto eu me esforçasse existia algo que sempre me puxava para baixo e eu não sabia o que era.

Foto: Istock/Adobe

Naturalizei meus amigos a deixarem a escola, já que a evasão escolar era tão comum na favela. Trabalhar cedo para ajudar na economia doméstica era quase padrão. Mas foi só quando eu concluí o ensino médio e consegui uma bolsa do Prouni para primeira universidade na qual ingressei que percebi que havia sido a única da minha turma a conseguir tal feito. E me questionei. Mal sabia eu que essa sensação de ser a única nos espaços e nas organizações se repetiria com muito mais frequência quando eu estivesse longe do ambiente da favela. Quando me mudei para São Paulo em busca de um sonho que parecia impossível, essa realidade ficou cada vez mais nítida diante de mim. A minha turma era a primeira da faculdade com “tantos” alunos negros. Quando nos espalhávamos pelos corredores, a sensação de ser a única voltava como um turbilhão.

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Com o tempo e a minha vivência aprendi que essa sensação estava relacionada a um conceito chamado de solidão da mulher negra. Olhei para o meu passado, lembrei de quando outras crianças falavam que eu tinha “cabelo de bombril” e “nariz de negro”. Pensei em algo mais recente: “acho que aquela moça puxou a bolsa quando eu passei em frente a ela” e “será que não me atendem quando eu chego numa loja por causa disso?”. O que eu tentei apagar por muitos anos voltou com toda a força, estava o tempo todo lá no fundo da minha mente: “eu sou negra” afirmei para mim mesma, de repente tudo fez sentido. Então, esse era o tal racismo? Eu achei o tempo todo que era culpa minha e que o problema era eu. Desabei, chorei muito por perceber que havia algo maior e mais forte que me condicionava a ter sempre mais dificuldade do que qualquer outro jovem branco.

Continuei em busca de realizar meus sonhos e simplifiquei as minhas expectativas, na minha cabeça não fazia sentido sonhar alto demais. O que eu queria mais? Já era a primeira da família a estar na faculdade, pensei então que deveria me contentar. No caminho, acessei mais e mais espaços, com muita dificuldade, depois de muitas horas de esforço dobrado e sob muitos olhares de “o que essa negra está fazendo aqui?”. Senti mais uma vez a dor da solidão da mulher negra, onde estavam as outras tantas mulheres negras do país? Então pensei que provavelmente muitas delas não tiveram as oportunidades que tive. Porque no fim, mesmo com todo o esforço feito, só acessei todos esses espaços pelas oportunidades que me foram dadas.

Com todas essas pedras comecei a erguer os meus castelos, ferro e martelo, como diria Iza, estava na hora de me blindar com conhecimento necessário para enfrentar a estrutura do racismo. Aos 21 anos já estava cansada de ouvir que racismo era “mimimi” ou que minha dor e a dor da minha raça era falta de coragem. Lembrei que venho da capitania de Zumbi dos Palmares, símbolo da luta negra e que como ele não poderia abaixar a minha cabeça. A única forma de não me sentir sozinha era preencher todos esses espaços com pessoas semelhantes a mim. Fiz deste pensamento a minha motivação de vida e entendi que a oportunidade de estar, de ter e de ser precisava deixar de ser um privilégio branco. Aos 24 anos já consigo ver o resultado – mesmo que ainda não seja o ideal – da luta de muitas pessoas negras. Ainda não estamos em todos os espaços, nem sempre somos ouvidos, não somos maioria em muitas organizações – para não dizer em todas -, não estamos nas lideranças, ainda há muito a se falar e mudar, mas posso dizer que me sinto cada vez menos solitária.

Iane Pessoa é analista de Projetos e Diversidade e Inclusão da Condurú Consultoria. Graduanda em Serviço Social pela Universidade de São Francisco – USF. Ativista social e defensora dos Direitos Humanos.

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