Por que “Oboró masculinidade negras” é a melhor peça teatral de 2019?

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Por Mariana dos Reis

Pensemos num espetáculo teatral que subverte a ótica colonialista de se projetar as relações sociais através do universalismo  baseado no homem branco, cristão, heterossexual e socialmente privilegiado. Sem cair no “lugar comum” de se problematizar apenas as masculinidades negras, fixando estereótipos machistas ou violentos, a profundidade das narrativas apresentada no palco desvela temas centrais presentes  no cotidiano dos homens negros.

Elenco da peça em atuação no teatro João Caetano – Foto: Rafael Lira

Desigualdade social, exaustivas jornadas de trabalho, heterossexualidade compulsória, ausência de afetividade, hipersexualização de corpos e abusos sexuais na infância, depressão, pensamentos suicídas,  frustração em suas carreiras profissionais, resgate de ancestralidade e tensões em relacionamentos racializados e inter raciais. A complexidade destes assuntos é abordada através da interpretação de 11 narrativas ficcionais de atores negros, por sua vez diversos  também em aspecto físico e coloração.  Oboró é um termo do dialeto Yorubá utilizado para designar orixás do gênero masculino. Deste modo, alguns destes estão representados por estes personagens da montagem como:. Exu, Ogum, Oxóssi, Omolu, Xangô, Oxumaré, Osanyin, Logun Edé e Oxalá teatral.  O espetáculo “Oboró: masculinidades negras” também  subverte a máxima do negro aceito socialmente, performando códigos da branquitude, do homem apenas provedor ou detentor de poder de consumo. Mesmo constando em narrativas da sinopse personagens que  ascendem socialmente na vida, há reflexões importantes sobre privações do ócio, anulação de suas subjetividades e exploração das condições de trabalho em ambientes profissionais ou acadêmicos segregadores. Assim, o teórico Frantz  Fanon reflete em seus estudos “Pele branca, máscaras negras” que ao homem negro é negado o direito de “ser”.

O texto da peça intersecciona em vários momentos o debate sobre gênero, raça e classe, balizando as distintas trajetórias com a estrutura do racismo estrutural existente na nossa sociedade. O que mais impressiona, além da excelente atuação e equidade do elenco, é a utilização de um figurino impecável somado a belas performance de dança afro no palco, simulando os respectivos orixás relacionados aos personagens. Quem assina o figurino e o cenário é Wanderley  Gomes e a responsável pela direção de movimento é a, já consagrada coreografa, Valéria Monã. O texto tem autoria de Adalberto Neto. O elenco é composto por uma safra de atores negros também engajados nas questões de negritude e políticas do Rio de Janeiro (Cridemar Aquino, Danrley Ferreira, Drayson Menezzes, Ernesto Xavier, Jonathan Fontella, Luciano Vidigal, Marcelo Dias, Orlando Caldeira, Reinaldo Júnior e Sidney Santiago Kuanza). O espetáculo, conta ainda com três músicos e a trilha e regência de César Lira.  A direção geral conta com Rodrigo França, profissional, figura icônica responsável pela explosão do teatro negro na cidade

O estrondoso sucesso do espetáculo tem sido tão propagado na cidade que rendeu recentemente o comentário na coluna do Ancelmo Goes no “O Globo” no dia 10 de janeiro de 2020. O jornalista escreveu: “ Um grupo de 40 ialorixás e babalorixás vai ao Teatro João Caetano, hoje para assistir o espetáculo Oboró(…). Todos estarão de branco”.

Se atendo a necessidade   de incentivar os povos de terreiro a assistirem o espetáculo, várias promoções foram criadas pela produção do espetáculo. A primeira promoção (reduzindo o ingresso pela metade), realizada no Teatro Firjan, solicitava que os espectadores fossem de branco na sexta feira (dia de Oxalá para as religiões de matrizes africanas). Cada espectador diria na bilheteria a palavra “Modupé” que quer dizer “obrigado” em yorubá.

Voltando a temporada este ano, a peça migrou semana passada para o grandioso teatro João Caetano, incentivando novamente os espectadores a irem de branco, reduzindo assim o ingresso a apenas 10 reais. Fica em cartaz no mesmo teatro até o dia 9 de fevereiro, de quinta a domingo.

Plateia no Teatro João Caetano de branco – Foto: Rafael Lira

Conversamos com o diretor Rodrigo França para compreender a propagação deste sucesso na cena cultural.

Notícia Preta: Por que você decidiu trabalhar um tema tão complexo como masculidades negras neste espetáculo?

Rodrigo França: Meu principal desejo foi tirar o homem negro do maniqueísmo  que o transforma em vilão e humanizá-lo. Esse homem erra mas também acerta. A sociedade sempre determina parte desta narrativa  como a escória, mas esse homem negro tem subjetividades, sonhos, erros e acertos e tem tudo aquilo que um seu humano de uma maneira complexa tem subjetividades, sonhos, erros, acertos e tudo aquilo que um ser humano de maneira complexa tem. Então, foi a maneira de aproveitar o teatro e mostrar para nosso espectador/ espectadora que vamos errar, mas que vamos acertar como qualquer ser humano. Na estrutura cultural africana, nós não temos esse maniqueísmos, nem nas histórias africanas e lusitãs

NP: Diante da conjuntura política ultraconservadora na cultura há certo tempo, você temia que o espetáculo fosse censurado ou criticado por intolerância religiosa? Comente também como você tem  visto este cenário.

RF: O teatro negro se perpetua em todos os espaços. O dia que eu não tiver o teatro italiano, tradicional, eu vou pra rua. Diante do cenário político, nós vamos sempre fazer Teatro. O teatro negro sempre foi realizado a partir de guerrilha, de resistência e não romantiza essa resistência pois se a gente vive num país democrático, os recursos deveriam ser iguais tanto para o teatro branco como o teatro negro. Nós de uma determinada forma nos condicionamos a fazer teatro independente dos recursos. É o pior cenário possível mas quando a gente fala de cultura, nós também falamos de cultura do Axé. Não vejo como intolerância religiosa, vejo como racismo, como terrorismo religioso. Este racismo não se perpetua só no palco, agora que está aparecendo mais na medida que você tem DJ pretos favelados presos, casas de Axé depredadas, esta estrutura reacionária violenta já está estabelecida há muito tempo e agora que mexeu nos bolsos da classe média, mas sempre bateu na gente.

NP: A que você atribui tamanho sucesso de “ Oboró: masculinidades negras?”

RF: Não atribuo o sucesso de “Oboró masculinilidades negras”, atribuo ao teatro negro que sempre foi forte! E cada vez mais o público  quer se ver e vem se enxergando em espetáculos que não é Oboró, que estão numa geração puramente digna, respeitando narrativas. E não é neste momento porque o teatro negro é continuo. O teatro negro é um sucesso porque ele é coerente, colocando o homem e a mulher negra no protagonismo de uma maneira digna.

Por fim, é importante ressaltar que este espetáculo possibilita ao espectador realizar reflexões sobre masculinidades negras, registrando críticas acerca de como alguns estereótipos atuam na construção de significados distópicos que dificultam a identificação de elementos positivos destas masculinidades enquanto práticas sociais. Feministas negras internacionais como Bell Hooks e Patrícia Hill Colins pontuaram em seus trabalhos a importância de se pensar as masculinadades negras a partir da intersecção entre raça, gênero e classe. Já Fanon denunciava em seus estudos que “o homem negro não é homem”, portanto não considerado como humano em uma sociedade colonialista e de estruturas raciais desiguais. “Oboró” conseguiu agregar, em sua sinopse, a junção de todos estes pensamentos, subvertendo a lógica negativada do homem negro construída pela supremacia branca. As masculinidades negras são plurais, possuindo diferentes contextos e subjetividades. 

Rodrigo França é diretor da peça – Foto: Arquivo Pessoal

Mariana dos Reis é doutoranda em educaçao, professora do Instituto Benjamin Constant, feminista negra e socialista.

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