“O capitalismo tem cor. Negro é sempre o elemento suspeito”, diz Conselheiro Federal que propôs cota racial de 30% na OAB

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No último dia 14 o Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, André Costa, escreveu mais um capítulo da história da advocacia brasileira. É dele a proposta aprovada de 30% de cotas raciais na OAB  para as próximas eleições da classe. Efetivamente, as chapas que concorrerão nos pleitos a partir de 2021 deverão ter esta proporcionalidade de negros.

André Costa – Conselheiro Federal OAB

O jurista cearense, que atua há mais de 25 anos como advogado especializado em Direito Eleitoral e Direitos Políticos, é o único Conselheiro Federal negro na OAB.

Em entrevista ao Notícia Preta, André Costa falou sobre sua trajetória dentro da advocacia e a importância da implementação do sistema de cotas na OAB.

Confira a entrevista

Notícia Preta: Qual a importância das ações afirmativas e do sistema de cotas dentro do Sistema de Justiça brasileiro?

André Costa: A implantação de políticas afirmativas, através de cotas étnico-raciais, é imprescindível para combater e eliminar o racismo institucional existente em todo o Sistema de Justiça, ou seja, nos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público (MP) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em rápidas palavras até porque positiva temos vasta literatura disponível para quem pretende fazer um debate ético e responsável sobre essas medidas de discriminação positiva –, ações afirmativas são “os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”, conforme previsto no Estatuto da Igualdade Racial ((Lei nº 12.288, de 20/7/2010). A badalada democracia racial esbarra no cotidiano. Na vida real, o Brasil é um país racista que exclui a maior parcela de sua população, formada por negros (pretos e pardos), dos seus órgãos decisórios. Depois de 358 anos de escravidão das pessoas negras e de 120 anos de uma abolição inacabada, temos que fazer tudo ao mesmo tempo agora: combater e eliminar o racismo individual, o racismo institucional e o racismo estrutural. Para cada um deles existem medidas adequadas, dentre elas, a implantação de ações afirmativas e de cotas na educação, no mercado de trabalho, nos serviços públicos e nos órgãos do Sistema de Justiça.

Notícia Preta: Como foi o desenrolar da aprovação da tua proposta na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB?

André Costa: Em julho passado apresentei uma proposta simples, mas concreta, efetiva e com conteúdo necessário para gerar uma profunda mudança na advocacia brasileira e em todos os órgãos da OAB (Conselho Federal, Conselhos Estaduais, Subseções regionais e municipais e Caixas de Assistência da Advocacia): a partir das eleições de 2021, todos os cargos, deveriam ser preenchidos por 30% de advogados negros e de advogadas negras pelo prazo de 30 anos (10 gestões). Simples assim! É importante destacar que outras propostas para fixação de cotas raciais no âmbito da OAB também foram apresentadas, mas, no dia histórico de 14 de dezembro de 2020, o Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB aprovou o inteiro teor da propositura que apresentei. Apenas quatro bancadas votaram contra, ainda assim, uma foi por maioria. Cada bancada é formada por 03 conselheiros e/ou conselheiras federais. Logo, de um total de 81, 70 integrantes do órgão máximo da OAB votaram a favor a proposta que apresentei. O resultado demonstra a ampla aceitação das lideranças nacionais da Ordem. E, por questão de justiça, devo destacar a atuação e a liderança do presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz, que teve papel fundamental no dia da votação, e do presidente da OAB-CE, Erinaldo Dantas, defensor da proposta na reunião do Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais, ocorrida em 01 dezembro passado.

NP: O Sistema de Justiça brasileiro é racista e excludente? De que forma vemos esse racismo no cotidiano?

AC: Não tenho a mínima dúvida. O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconheceu essas características do Sistema de Justiça. Não é à toa que em julho de 2020, o CNJ realizou o Seminário “Questões Raciais e Poder Judiciário” e criou o “Grupo de Trabalho sobre Igualdade Racial no Poder
Judiciário”, com o objetivo de elaborar “estudos e indicação de soluções com vistas à formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário”. E em setembro último, através da Portaria Conjunta nº 7/2020, o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a igualdade e o combate à discriminação racial se tornaram casos de monitoramento pelo Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão. Portanto, existe um reconhecimento oficial das desigualdades raciais existente. E o racismo no cotidiano se revela desde a ausência de juízes, membros do MP e advogados nos órgãos decisórios e nos grandes escritórios, bem como, o fato da população negra serem os alvos referenciais dos presídios, das forças policiais, da pobreza e da miséria. Os estudos e pesquisas demonstram o verdadeiro extermínio da juventude negra. Há um verdadeiro genocídio da população negra. No Brasil, a pessoa negra é sempre o elemento suspeito. O capitalismo tem cor. Como diria Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

NP: Você vê algum reflexo do sistema de cotas implementado nas universidades (algumas há 17 anos) na advocacia brasileira hoje?

AC: Não tenho os dados oficiais. Certamente a turma do EDUCRAFO deve ter esses números. Todavia, o aumento de pessoas negras nas instituições de ensino superior é visível e demonstra, apesar de todas as dificuldades, se deu a partir do sistema de cotas, o qual foi declarado constitucional pelo STF em 2012, tendo a OAB participado ativamente desse processo judicial, inclusive atuando para que a ação proposta pelo Democratas-DEM fosse julgada improcedente na nossa Corte Constitucional. Os resultados são
todos positivos. O sistema de reservada de vagas é uma política pública que deu certo. Temos muito mais estudantes de direito e advogados negros e advogadas negras, inclusive mais estudantes e advogados assumindo que são pretos ou pardos, ou seja, que são negros. A OAB Nacional vai fazer um censo para levantar o perfil da advocacia brasileira e então saberemos quem é quem dentre os atuais 1.208.691 inscritos(as) na Entidade.

NP: É possível ter uma advocacia antirracista no Brasil? Como?

AC: O racismo não é um problema dos negros. É um problema dos brancos que, com ações e omissões, perpetuam e reproduzem as desigualdades raciais, sociais, econômicas jurídicas. Ainda assim, entendo que o protagonismo na luta contra o preconceito e a discriminação racial deve ser da população negra. Essa conclusão não exclui a participação ativa e a solidária dos brancos não racistas, afinal quase a metade do Brasil é composto por pessoas brancas. Portanto, uma advocacia antirracista é aquela que tanto os profissionais negros como os profissionais brancos, atuam, diariamente, contra o preconceito racial e às práticas discriminatórias contra os homens negros, as mulheres negras e os indígenas, mas que também valoriza e defende a implementação de mecanismos, ações e políticas de inclusão da população negra em todo e qualquer espaço de poder, em qualquer ramo e no mercado de trabalho
jurídicos. A educação jurídica, de forma interdisciplinar e de modo transdisciplinar, tem muito a contribuir para a construção de uma formação jurídica antirracista. Pretendo propor ao CFOAB que defenda junto ao MEC a criação da disciplina “Direito e Relações Raciais” nos cursos de graduação em Direito para que os futuros profissionais das carreiras jurídicas possam conhecer a realidade do racismo brasileiro e estudar as normas nacionais e internacionais que tratam sobre o tema. Fico a imaginar os alunos lendo as obras de Luiz Gama, Abdias Nascimento, Sílvio Almeida, Adilson Moreira, Suely Carneiro, Lélia Gonzalez, Lígia Ferreira, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Angela Davis, Carolina Maria de
Jesus, Achille Mbembe, Asad Haider, Frantz Fanon, Cornel West, Guerreiro Ramos, Kabengele Munanga, Milton Santos… Seria uma revolução na interpretação e na aplicação das normas jurídicas.

NP: O que te motivou a ser advogado? Você tinha referências na tua juventude? Quais?

Até o início do Ensino Médio pensava em cursar psicologia. Então li o livro “Brasil: Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, Rabino Henry Sobel, Pastor presbiteriano Jaime Wright e equipe. Essa leitura mudou minha percepção de mundo e resolvi que o curso de Direito seria minha escolha profissional e também meu espaço de ativismo em defesa dos direitos humanos. Meu Pai, que hoje já não se encontra entre nós, foi o meu grande incentivador. Desde sempre me apoiou a me graduar em Direito. E ser advogado, ou seja, ser aquele que luta pelos direitos das pessoas sempre alimentou meus sonhos, mesmos nos momentos mais difíceis da minha trajetória universitária. Sou a primeira pessoa da minha família a concluir um curso superior (1995).

NP: Ao longo de sua trajetória profissional o racismo esteve presente? Como?

AC: Sim, diversas vezes. Eu sei e senti na pele discriminações diretas e indiretas, muitas vezes veladas. Na infância, na adolescência, na juventude e ainda hoje: os apelidos, as piadas, as referências a cor da pele por pessoas que não tem qualquer intimidade conosco, nas relações com familiares de amigos etc. Nem sempre tive esse olhar para perceber o preconceito e a discriminação contra mim. Escrevi na apresentação da separata “Escritos sobre Racismo, Igualdade e Direitos”, de minha autoria: “A partir de 2004, resultado de leituras, reflexões e interação com valorosas pessoas que, cotidianamente, lutam pela promoção da igualdade racial no país – experiência que me levou a “descobrir-me negro” – comecei a focar, sem abandonar a pauta geral dos direitos humanos – imprescindíveis, universais e indivisíveis – em temas e assuntos relacionados ao racismo, ao preconceito e à discriminação raciais sofridos por nós negros e negras, vítimas de uma das maiores atrocidades já cometidas na história da humanidade: 358 anos escravidão no território brasileiro.” O mito da democracia racial também me enganou porque fui criada sendo protegido do racismo que existia ao meu redor. Como diz meu amigo Preto Zezé, presidente da CUFA, muitas vezes leva-se muito tempo para se descobrir que se é negro e como é ser negro ou negra no Brasil.

NP: Como é ser o único Conselheiro Federal negro na OAB?

AC: Na epígrafe do livro autobiográfico do Gabriel García Márquez, chamado: “Viver para Contar” (2003), ele escreve que “a vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda, e como recorda para contála.” Portanto, ser o único negro no CFOAB está sendo uma experiência inesquecível porque é exatamente na atual gestão (começou em janeiro de 2019 e terminará em janeiro de 2022) que mesmo eu sendo o único Conselheiro Federal autodeclarado negro, o que teremos para recordar e para contar para o país e para o mundo é que essa ausência de outros(as) colegas negros(as) na cúpula da direção da Ordem também serviu para que a maior entidade de classe do mundo reconhecesse essa falha (o seu racismo institucional) e aprovasse uma política afirmativa para preencher os seus cargos com 30% de advogados(as) negros(as) entre 2022 e 2052. E o fato de eu ser um único autodeclarado negro não significa que não tenha mais dois ou três colegas de CFOAB que sejam advogados negros (pretos ou
pardos). Todavia, se eles não se assumem como pretos ou pardos não cabe a mim apontar o dedo, afinal esse processo é um profundo reposicionamento pessoal e político. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Caetano Veloso). Por isso, os ganhos da aprovação dessa ação afirmativa vão do plano material ao plano simbólico. Por outro lado, tenho a convicção que o meu desempenho profissional e a coragem de ocupar os espaços públicos ou privados – quebrando os padrões existentes em espaços dominados por e naturalizados como de pessoas brancas – me fizeram muito mais forte e chegar até onde eu cheguei. No CFOAB aguardei o momento adequado para apresentar a proposta e ajudar a transformar o perfil dos órgãos deliberativos da Entidade.

Notícia Preta: O que te motiva a não desistir?

AC: A esperança. Nunca deixei de acreditar que poderia vencer todos os obstáculos que surgiram nessa caminhada que completaram 49 anos. Nessa trajetória fui ajudado por diversas pessoas. Acredito muito na força das energias positivas do universo. Thiago de Mello, um poeta amazonense e cidadão do mundo, tem um poema que há décadas me serve de inspiração e sempre renova a minha fé num mundo melhor. Eis um trecho de “A Vida Verdadeira”: “Por isso é que agora vou assim, no meu caminho. Publicamente andando. Não, não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar. Aprendi (o caminho me ensinou) a caminhar cantando, como convém a mim e aos que vão comigo. Pois já não vou mais sozinho.”

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