Entre Baianas e Passistas ou sobre a divisão sexual no carnaval

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Desfile de Carnaval Mangueira 1987 no Sambodromo Foto: Otávio Magalhães

Por: Angélica Ferrarez de Almeida – Historiadora

Há uma crença no universo do samba que quer marcar lugares específicos para homens e mulheres. Quero refletir com vocês o quanto essa crença empobrece o debate e o quanto essa divisão sexual não se aplica no movimento do samba. Primeiro, porque estamos experimentando novas identidades num corpo que é cada vez mais político, um corpo texto, como diria Lélia Gonzalez. E, segundo, porque lugares entendidos como marcadamente femininos, já foram masculinos no passado e vice versa. 

Queremos dizer com isso, que não há lugar específico só de homens ou só de mulheres. Há sim muito mais trânsito e mobilidade do que se pensa. E explorar esse universo será uma boa chave de compreensão da modernidade do samba. Quero ilustrar com dois exemplos básicos para iniciar a conversa.

Desfile de Carnaval Mangueira 1987 no Sambodromo Foto: Otávio Magalhães

Umas das leituras do nascimento da ala das baianas fala dos homens como protagonistas e sugere um movimento de luta e disputa. Os homens usavam navalhas na pontas das saias e rodopiavam. Esta prática era utilizada como forma de defender os que estavam “dentro” da corda durante o desfile dos blocos. A roupa da baiana era uma homenagem as tias que abrigavam os sambistas em seus quintais no início do século XX.  

Segundo consta em jornais de época, até a década de 40 e 50, ainda havia homens nessa ala. “As baianas vinham formadas nas laterais e tinham a incumbência de defender a agremiação das violências que sofriam, quando grupos rivais se encontravam”, conta o pesquisador Hiram Araújo. Eram as chamadas baianas-de-linha, que foram substituídas pelas baianas-de-corda quando estas começaram a formar uma ala mais coesa e aglutinada, formação que temos atualmente. As disputas entre as agremiações perdeu esse jogo do corpo a corpo com a entrada de jurados, e a partir de 1990, o homem “vestir à baiana” passou a ser proibido, o que marcou a feminilização da ala durante anos.

Atualmente, com o fenômeno do neo pentecostalismo, muitas mulheres da ala estão se convertendo e deixando de participar do carnaval por associar sua prática e sua indumentária aos cultos de matriz africana. Com este fenômeno juntou-se outro que foi a liberação da Associação das Escolas de Samba para que homens vestissem à baiana no grupo de acesso. 

Outro fato que vem somar aqui é o peso da roupa que interfere na perspectiva geracional da ala e que volta a atrair homens pro posto. Com o passar dos anos, a roupa de uma baiana chegou a ter 30k, como a ala acabou sendo ocupada por mulheres mais velhas, algumas senhoras não tinha mais força física para suportar o esplendor de uma fantasia, o que abriu espaço para as mais jovens e para o retorno dos homens. 

Uma outra imagem interessante me foi contada por tia Dodô (essa que tem me inspirado a escrever uma tese), e diz: 

Eu e ela. (Dorinha) Nós trabalhava na fábrica, a gente não prestava. Quem trabalhava nas fábricas, quem dançava na gafieira, quem ia pra escola de samba, não prestava. Então não tinha baiana essa coisas. Então, os homens, os meninos que gostavam de rebolar que iam. Não tinha muita mulher enfiada nisso.

Marcar certos espaços públicos como impróprios para o projeto de construção do que seria uma boa reputação feminina é um tipo de violência que se construiu contra o universo feminino, seja nas fábricas, nas ruas e no samba. Diria que este foi um dos maiores instrumentos de controle de políticas sexistas empreendidas contra mulheres. Por isto as estratégias femininas de marcar lugares, daí a ideia da ocupação feminina.

Portanto, é necessário desnaturalizar, e não acreditar em dicotomias que opõem mulheres e homens. A presença de um ou de outro sexo é flutuante e complementar e ficar apegado a estas verdades simplificam nossas questões e nos coloca em gaiolas do pensamento. 

É justamente não essencializando estes lugares, lugares só de mulheres ou só de homens que teremos como refletir a ocupação feminina dos espaços, como um ato político e instrumento de poder das mulheres, visto que as tentativas de invisibilização do seu papel e da fetichização de seus corpos é um projeto falido e repudiado por movimentos de mulheres e parte engajada da sociedade.

E por falar em fetiche, vamos ao segundo exemplo, caminhando da ala das baianas para a ala das passistas. Mas estas vocês verão no próximo texto….  Nos acompanhe!

Historiadora Angélica Ferrarez

Minibio

Angélica Ferrarez é mãe da Ynaê e mulher negra no mundo. Apresentadora da webserie Rodadas, Historiadora, Professora e Doutoranda estudando a história e memória do samba carioca. 

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