Diretor de série sobre Marielle cita assassinato Malcom X como exemplo para dizer que inimigo do negro ‘não era o homem branco, era o ódio’

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Tentando justificar as criticas recebidas por produzir uma série sobre Marielle Franco sem pessoas negras em sua direção, o Diretor José Padilha publicou um artigo na Folha de São Paulo, nesta terça-feira (10), intitulado ‘Linchamento Moral”. No texto, o diretor, famoso pela produção do filme Tropa de Elite (2007), que transformou policiais assassinos em heróis nacionais, resume em poucas frases a história de Malcom X e diz: “Seus assassinos, também negros, provaram sua tese: o inimigo não era o homem branco, o inimigo era o ódio”.

A série de ficção da Globo Play sobre a vida e o assassinato de Marielle Franco é conduzida por três pessoas brancas. A roteirista Antonia Pellegrino, José Padilha e George Moura. A roteirista, que é mulher do deputado federal Marcelo Freixo, ex chefe e amigo de Marielle que trabalhou por mais de 10 anos no gabinete do parlamentar, tentou justificar a escolha de José Padilha como diretor da produção.

“Sou progressista e não-punitivista. Ele se arrependeu. As pessoas erram. E não acho que seja um erro suficiente para a gente cancelar uma pessoa”, declarou Pellegrino em entrevista ao colunista Mauricio Stycer, do UOL, sobre a série “O Mecanismo”, dirigida por Padilha.

O envolvimento de Padilha com O Mecanismo – que contou a história da Lava Jato de um ponto de vista adesista – é apenas um dos pontos criticados por diversos profissionais negros do audiovisual e das artes no geral em uma carta aberta. “É revoltante mais uma vez ver a branquitude disfarçar de boas intenções a apropriação da imagem de uma mulher negra lésbica, favelada, mãe, filha, irmã e esposa”, diz trecho da carta.

No artigo publicado Padilha ressalta sua relação com Marcelo Freixo como algo que legitima sua participação na série: “Senti a importância do gabinete de Freixo e aportei recursos na campanha do PSOL. Nunca escrevi sobre isso. Não gosto de me explicar. Mas tomem nota por favor.”

Segue abaixo o artigo publicado:

Linchamento moral


Anúncio de série sobre Marielle gerou acusações de racismo e fascismo sem direito a respostas ou tempo para explicações

José Padilha


No dia 13 de abril de 1964, Malcolm X iniciou sua jornada espiritual ao Oriente Médio. Na Arábia Saudita, presenciou a confluência de pessoas de várias raças no entorno de Meca. Voltou mudado aos Estados Unidos. Anunciou que seu inimigo não era o homem branco, era o ódio.

Malcolm X dormia com sua esposa e seus filhos quando duas bombas incendiarias foram lançadas dentro de sua casa. Acordou em meio a fumaça, correu, ajudou a esposa a resgatar duas filhas e um bebê. Conseguiu escapar. Uma semana depois, levou um tiro de 12 no peito. Seus assassinos, também negros, provaram sua tese: o inimigo não era o homem branco, o inimigo era o ódio.

Conheci Marielle Franco no mesmo dia em que conheci Marcelo Freixo. Foi no Cine Odeon, em um debate ancorado na projeção de “Ônibus 174”, meu primeiro filme. Participamos de outros debates. Tenho alguns deles filmados. Freixo e Marielle nuca me chamaram de fascista. Pelo contrário, me ajudaram na pesquisa e na pré-produção do “Tropa 2”.

Freixo me deu acesso à CPI das milícias, que frequentei regularmente. Com o sucesso do “Tropa 2”, ficou ainda mais popular. Merecido. Senti a importância do gabinete de Freixo e aportei recursos na campanha do PSOL. Nunca escrevi sobre isso. Não gosto de me explicar. Mas tomem nota por favor.

Saí do país alguns meses depois, porque fui vítima de uma tentativa de sequestro por parte de policiais milicianos. Mesmo morando fora, Antonia Pellegrino me procurou. Queria ajudar as pessoas mais próximas de Marielle e de Anderson. Queria fazer uma série de TV. Queria levar o nome de Marielle aos quatro cantos da terra. Julgava que, com meu nome no projeto, a série teria mais chance de obter distribuição internacional. E a família teria mais recursos. Aceitei na hora. Negociei por meses. Estava fechando um acordo internacional quando a Globoplay se interessou pelo projeto.

Não é difícil perceber porque a Globoplay é o melhor parceiro. No Brasil, a Globo tem alcance infinitamente maior do que qualquer estúdio estrangeiro. Tem ótimo elenco de atores negros. Tem ótimos diretores negros. Tem ótimas escritoras negras. Tem ótima equipe técnica negra. Sim, pensamos em tudo isso. Vocês não me conhecem, mas conhecem a Antonia. Além disso, uma série na Globo pressionaria as autoridades a encontrar e a punir quem matou Marielle.

Cheguei ao Brasil para assinar contrato. O meu trabalho seria ajudar na montagem do “writers room”, escrever um roteiro em parceira com a Antonia e dirigir o primeiro de, no mínimo, oito episódios. Além disso, queria ajudar Antonia, a Globoplay e o Instituto Marielle Franco a treinar novos talentos, usando a série como uma espécie de escola.

Não consegui nem começar.

O que aconteceu no dia seguinte ao da assinatura do contrato foi estarrecedor. Além de acusarem Antonia de racismo —apesar de a Antonia estar trabalhando com afinco para montar um equipe representativa da comunidade negra no Brasil e no exterior— e de me taxarem de fascista (Marielle nunca me chamou de fascista), atacaram a legitimidade da família de Marielle, atacaram a Mônica e atacaram Marcelo Freixo.

Foi um linchamento moral sem direito a respostas ou tempo para explicações. Os linchadores reduziram tudo à cor da minha pele, como se eu fosse fazer o projeto sozinho, como se não fôssemos contar a história de Anderson, um homem branco, como se não fôssemos montar uma equipe repleta de realizadores negros. Linchamentos sumários são compatíveis com os valores de Marielle?

Eu tenho um sonho. Eu sonho que meus filhos um dia viverão em uma nação em que as pessoas não serão julgadas pela cor de sua pele, mas sim pela natureza de seu caráter. Quem disse isso foi Martin Luther King. Sobre o meu caráter: nunca roubei ninguém, nunca cometi ato de racismo, nunca pressionei mulheres, nunca discriminei qualquer pessoa por sua opção sexual. Na minha vida, só fui processado por policiais do Bope e por milicianos.

No entanto, me tornei fascista porque filmei “Tropa de Elite”. Isso apesar de ter recebido o Urso de Ouro das mãos de Costa Gravas, ícone do cinema de esquerda, e de tê-lo entregue ao Lula, que queria fazer uma foto com ele. Nenhum dos dois me chamou de fascista.

Fiz vários outros filmes, incluindo “Garapa”, um documentário sobre a fome no Nordeste. Ajudo as famílias filmadas mensalmente, faz 12 anos. O primeiro documentário que produzi foi sobre carvoeiros. Retratou trabalho insalubre, escravidão e trabalho infantil. Na época, depois de uma exibição do filme no Congresso, eu, Eduardo Suplicy e Luciana Genro invadimos a sala de Michel Temer para pressioná-lo a colocar em pauta uma emenda constitucional que tornaria a alimentação um direito fundamental de todos os brasileiros. Conseguimos.

Posso continuar listando inúmeros fatos dessa natureza, mas acho que, no fundo, vocês já conhecem a minha trajetória de cineasta. E acho que o maior problema de vocês comigo foi a minha critica à corrupção sistêmica do PT e do PMDB. Embora eu também ache que vocês saibam que o petrolão, o mensalão e Belo Monteaconteceram de fato.

Talvez não saibam, entretanto, que não vivo sozinho. Tenho um filho e uma companheira. Será que estas pessoas estão sendo afetadas pelo linchamento em decurso? O mesmo vale, evidentemente, para as pessoas próximas de Marielle, de Antonia e de Mônica.

O pensamento de Martin Luther King é incompatível com a limitação da liberdade de expressão, com o julgamento de pessoas com base na sua cor e na sua sexualidade. A política de identidade é fundamental, mas levada ao extremo fulmina gente como Malcolm X. (Não, não estou me comparando com Malcolm X.)

O inimigo, amigos, é o ódio.

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