As estátuas também morrem

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Por: Angélica Ferrarez de Almeida

Doutoranda em História Política – UERJ e Pesquisadora do grupo de Pesquisa Multi Institucional

A estátua de Edward Colston que foi jogada nas águas do rio que corta o porto de Bristol – Foto: Divulgação Internet

Sim, precisamos dar um enterro digno ao colonialismo!

Em meio às manifestações mundiais e as disputas de narrativas, uma imagem chamou atenção em especial no dia 07 de junho na cidade de Bristol, na Inglaterra. A retirada de um monumento pela sociedade civil britânica, trata-se da estátua de Edward Colston que foi jogada nas águas do rio que corta o porto de Bristol.

Edward Colston nasceu em 1636 na Inglaterra e enriqueceu na empresa escravocrata após entrar para a Royal African Company, uma das maiores companhias de comércio e sequestro de pessoas na África Ocidental, responsável pela distribuição de mercadorias e pessoas escravizadas para as Américas. Colston se tornou um homem rico e influente, morrendo aos 84 anos em 1721.

O enterro da estátua de Colston, que foi erguida pelo parlamento Inglês em 1895, representa o enterro simbólico do colonialismo. O que se enterra nesta imagem é o desejo de enterrar uma certa memória, restituindo tantas outras enterradas à força do colonialismo e de uma de suas facetas mais cruéis, a escravidão.

Para que servem os monumentos? Há sociedades que festejam em torno de seus monumentos, sacralizam o espaço, colocam flores, comidas e bebidas, fazem lavagens, brindam em torno daquele espaço, e assim atualizam no presente tudo que aquele monumento representou. No Brasil, fazemos isto em torno da imagem do líder quilombola Zumbi dos Palmares em 20 de novembro, dia marcado pela consciência negra, fazemos lavagens e festas nas escadarias do Pelourinho na Bahia, escadas construídas pelo trabalho escravo. Há lavagens e outras festas no Cais do Valongo do Rio de Janeiro, que só entre 1779 e 1831, recebeu cerca de um milhão de homens, mulheres e crianças escravizadas, muitos comercializados, inclusive, pela Royal African Company. Fazemos lavagens e samba na Pedra do Sal, para lembrar daquele espaço enquanto local que foi de trabalho escravo e resistência do povo negro. Dentre várias outras manifestações neste país.

Monumentos servem para gente celebrar, rememorar sua história e atualizar sua memória no espaço tempo. Quando lavamos o Cais do Valongo, estamos celebrando a memória das milhares de vidas desumanizadas, desembarcadas naquele Cais, e não a memória do tráfico ou do traficante. Claro que ainda temos muitas estátuas para enterrar nesse Brasil continental; muitas ruas, escolas e outras instituições para renomear e este trabalho está apenas começando.

Na esfera dos saberes, o filósofo sul africano Mogobe Ramose (2011) diz:

“Quem quer que seja que possua a autoridade de definir, tem o poder de conferir relevância, identidade, classificação e significado ao objeto definido”. Logo, classificar, nomear, erguer monumentos são dispositivos de poder que conferiu ao colonialismo alçar sua posição de sujeito do “universal” e ao renomear e reivindicar o direito de contar nossas histórias em primeira pessoa, estamos deslocando a ideia do “universal” e refundando universais a partir da legitimidade de nossos discursos na história.

A intelectual e artista multidisciplinar Grada Kilomba chama atenção para o fato de o colonialismo ser uma ferida aberta que não foi tratada e, por isso, às vezes dói, às vezes sangra e por vezes se atualiza. Conforme o movimento de resistência vem crescendo e enterramos as estátuas e a evocação da memória colonial, os instrumentos do “neo colonialismo” também se refinam em dispositivos de extermínio. É preciso estar atento e forte!

Neste sentido, há um plano de exclusão da partilha do comum sendo reatualizado, tentando ainda invisibilizar os grupos subalternizados, seus modos de saberes e fazeres, tentando retirar do grupo considerado o “outro” a possibilidade de arranjo e organização mental e social.

Como força de resistência a esse sistema, o grupo se subverte. Por isto, quando as estátuas do colonialismo tombam, os grupos responsáveis estão dizendo: nós somos visíveis, nós vamos participar e vamos começar dando o enterro digno as coisas.

** Por ironia, o título escolhido para esse texto foi inspirado no documentário “Les statues meurent aussi” de 1953, dos cineastas Alain Resnais, Ghislain Cloquet e Chris Marker que denunciam como são tratadas as peças saqueadas durante o colonialismo. O documentário é um convite à reflexão sobre as pilhagens de objetos da cultura africana que foram aprisionados em museus europeus, que, por sua vez, construíram as bases para a sua modernidade forjada nos saques do colonialismo.

Angélica Ferrarez de Almeida é Doutoranda em História Política – UERJ e Pesquisadora do grupo de Pesquisa Multi Institucional africaswww.grupoafricas.wix.com/site

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