“Aquilombamento é a palavra”, define Flávia Oliveira ao falar sobre o 13 de Maio

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Crédito: Reprodução de vídeo

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*Matéria escrita pelos colaboradores Cipriano jr. e Lídia Michelle Azevedo

A Abolição é um marco legal e simbólico para a inclusão do negro como ente participante da sociedade brasileira, mas também é um exemplo nítido de como no Brasil este processo está incompleto: “Liberdade raiou, mas a igualdade não”, como cantou a Beija-Flor no Carnaval de 1988. Na visão da jornalista Flávia Oliveira, em entrevista exclusiva ao Notícia Preta, um conceito fundamenta o desafio que a comunidade preta tem ao dialogar com esta data e construir um país melhor.

“Para este 13 de Maio, para todos os outros que virão e em nome dos 13 de Maio que já atravessamos, aquilombamento é a palavra. E eu acho que não tem nenhum preto de fato ou metaforicamente que não entenda esse chamado. Lidar com o precário e produzir sustento, alegria, cultura e fé na escassez é algo que o nosso povo sabe fazer há muito tempo, caso contrário, como diz o Luiz Antônio Simas, historiador que respeito e admiro, o pau ia ser só porrete para apanhar e virou baqueta de tambor. A gente é capaz de fazer esses milagres”.

A dualidade entre 13 de Maio e 20 de Novembro, Princesa Isabel e Zumbi dos Palmares, é um ponto de debate dentro do movimento negro. Além dele, a construção do senso comum sobre o processo de escravização e a forma como ela é ensinada nas escolas é consequência da luta e da produção de conhecimento de muitos para superar apagamentos e simplificações. Flávia Oliveira destaca esta mudança de entendimento sobre o processo histórico a partir de seu próprio olhar.  

“A construção e a reflexão sobre este significado vieram para mim a partir da vida adulta. É uma oportunidade que hoje as crianças e jovens negros e têm mais precocemente, a gente já fala com mais propriedade, tem mais informação, produção acadêmica, consistência de discurso e pesquisa histórica que nos permite mostrar com provas o protagonismo negro e eu agradeço muito por isso. A Abolição não foi uma concessão, foi uma conquista coletiva que envolveu a população negra, em várias dimensões, e também uma parcela da população branca dominante em razão da geopolítica internacional e das transformações do mundo. Não foi presente ou generosidade da princesa Isabel”.

Colunista do jornal O Globo e comentarista da Globo News e da rádio CBN, Flávia Oliveira é uma das principais analistas econômicas e sociais do Brasil. Diante de um cenário político em que o debate das pautas chamadas identitárias é vista como menor por alguns agentes, e mesmo as conquistas desses grupos passam a ser revistas pelos ocupantes do poder, é decisivo compreender o impacto do racismo, do machismo e do patrimonialismo nos problemas nacionais.

“O cenário macro não é favorável para quem já está em grupos vulneráveis e não me parece haver ênfase em acolher e impulsionar os grupos de vulnerabilidade. O leque de políticas e de decisões não foi inteiramente apresentado e o que a gente já conhece não foi inteiramente aprovado, mas acho que o governo atual presta um desserviço quando anula, secundariza ou deprecia os debates e as políticas relacionados às identidades. Por si só, o discurso que despreza essas ações são um mal para uma sociedade desigual como a brasileira. E numa desigualdade mais grave que em outros países, porque ela alcança a maioria da população: seja pela ótica racial, seja sob a ótica de gênero. Acho uma pena”.

Crédito: Reprodução do Instagram

Entrevista 4P

NP: Qual a relevância de tratar do 13 de maio e do processo de Abolição tendo como cenário este Brasil de 2019? E o próprio papel da princesa Isabel e da aristocracia no processo?

Flávia Oliveira: Tratar criticamente o 13 de maio é uma agenda que, enfim, não se limita ou não está restrita a esse momento de ameaça de retrocesso no Brasil. Acho que permanentemente essa data, que é um marco do ponto de vista legal, no sentido da conquista formal da libertação dos escravos, dos escravizados, ela sempre nos servirá para uma reflexão para uma abordagem crítica em relação ao significado disso que a gente chama de liberdade – ou de libertação. Era relevante no governo Fernando Henrique, continuou relevante no governo Lula, no governo Dilma e no governo Temer. E seguirá relevante no governo Bolsonaro. Primeiro, que é um momento em que a gente se ocupa de pensar o que faltou no processo de construção dessa liberdade – e faltou muita coisa -, no que a gente efetivamente avançou nesse intervalo de agora 131 anos. E no que falta avançar ou quais serão as prioridades dos negros brasileiros, com a diversidade e complexidade que essa expressão carrega em termos de agenda nesse momento e nos anos para frente. É uma data que se presta e sempre se prestará a reflexão qualquer que seja o grupo político no comando.

NP: É possível dizer que a estrutura da sociedade brasileira e o papel designado pela maior parte da população negra ainda é consequência de um processo de libertação incompleto – social, econômica, política e culturalmente falando?

FO: É um fato absolutamente claro que a estrutura da sociedade brasileira forjada no racismo, no machismo, no patrimonialismo determina muito da desigualdade que a gente atravessa, que a gente experimenta até hoje. Em particular, em relação à população negra, os homens negros e as mulheres negras. Eu acho que o processo histórico colonial é determinante para explicar o que nós somos e quão incompleta foi isso que a gente chama de libertação.

NP: O marco são os 131 anos da Abolição da Escravatura. Os negros estamos livres de fato? De qual(ais) liberdade(s) estamos falando? Ainda estamos confinados no estereótipo de prestadores de serviço?

FO: Acho nunca estivemos livres de fato. E, na verdade, será que um dia estaremos? Eu não sei, se a gente pensar em liberdade como um conceito absoluto, isso é uma disputa, não é apenas sobre os negros brasileiros. Sob o ponto de vista da humanidade a gente alterna, né? Ciclos de mais e menos liberdade em variados aspectos. Em se tratando especificamente desse sentido de liberdade da pergunta sobre os negros brasileiros, eu acho que ainda falta muito. O acesso a educação ainda não foi universalizado para toda a população negra brasileira, você tem um desequilíbrio na proporção de crianças negras e crianças brancas que estão na creche, na educação infantil, em alguma medida o ensino fundamental já corrigiu muito dessa distorção, mas no ensino médio volta a ter essa assimetria, no acesso à universidade tem assimetria, as condições de saúde são diferentes, as doenças da precariedade, da vulnerabilidade, baixa renda, as baixas condições de saneamento alcançam sobretudo a população negra, as más condições habitacionais, o deslocamento, o acesso ao mercado de trabalho, todos os indicadores de mercado de trabalho são desfavoráveis aos homens e às mulheres negras, a representação política está muito aquém do nosso tamanho e da nossa participação na sociedade como um todo, a participação no poder econômico e no mundo corporativo também está muito aquém. Há uma agenda ampla de desafios a serem superados na direção de uma liberdade desejada ou de uma igualdade necessária na sociedade brasileira de um modo mais amplo.

NP: Como as políticas econômicas, sociais e educacionais do atual governo federal afetam a população negra? Olhando para frente, quais as perspectivas neste cenário?

FO: É uma pergunta difícil de responder porque o leque de políticas e de decisões não foi inteiramente apresentado, e o que a gente já conhece não foi inteiramente aprovado. Mas acho que o governo atual presta um desserviço quando anula os debates relacionados ao que estão gostando de chamar de agendas identitárias, quando diz que isso não tem importância, que somos todos iguais, que não precisa de segmentação, de cuidados, de políticas de correção de desigualdade, quando você secundariza ou deprecia a necessidade de políticas que empurrem determinados segmentos que estão em vulnerabilidade, notadamente mulheres e negros, LGBTQS, pessoas com deficiência, etc, você está naturalmente empurrando para a vulnerabilidade mais contingentes populacionais. Me preocupam também em algumas políticas mais liberais que obviamente vão acabar provocando mais vulnerabilidade para quem já está fragilizado. Então, não é só sobre a política econômica, educacional ou de saúde, é sobre tudo isso e sobre meio ambiente também, quando você negligencia o debate sobre clima, quando negligencia o debate sobre preservação do meio ambiente, sobre terra, regulação dos recursos naturais. É óbvio que você está empurrando para vulnerabilidade, gerando prejuízos sobretudo para quem é pobre, preto, mulher sem marido, em condições precárias de habitação diante de mudanças climáticas que tornam os eventos climáticos mais violentos e frequentes. Eu acho que é tudo muito preocupante. Eu temo por um aumento de desigualdade e de precarização nas condições de vida de quem já era vulnerável e ficará mais no Brasil. Mas, a vida e o Brasil nunca foram fáceis para mulher nem para preto muito menos para mulher preta, então lidar com o precário e produzir sustento, alegria, cultura e fé na escassez é algo que o nosso povo sabe fazer faz tempo. A gente é redistributivo do ponto de vista de riqueza, fé e afeto, desde sempre, trazidos para esse continente à força, retirados de origens diversas, agrupados de forma que mal se entendia a língua uns dos outros; a gente foi capaz de estabelecer laços comunitários, de convivência, com divisão de tarefas, lógica de proteção, lógica de defesa e eventualmente ataque, de sobrevivência e ciclo produtivo, a gente sabe fazer tudo isso e vamos continuar fazendo a partir dos nossos territórios, das nossas comunidades, das nossas localidades, e vamos atravessar mais essa, porque o nosso destino é atravessar dificuldades, se perpetuar e se reproduzir. E no limite também sambar.

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